sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Coisas que nos mordem...


Há que ver que até ao presente dia
Tem sido longa e multifacetada a travessia
Deste homem que, sem dar hora por perdida,
Se perdeu e encontrou muitas vezes na vida,
E se a gente só se arrepende do que não vive,
Então creio-me no direito e sou livre
De afirmar, sem qualquer sentido obscuro,
Que só nos podemos arrepender do futuro,
Pois que o futuro – assim, pelo menos, o vejo eu –
É sempre e ainda só aquilo que se não viveu,
O que não quer dizer, por palavras menos belas,
Que não nos venha morder as canelas
Esse por vezes feroz animal, que é o passado,
Que uns, mesmo tendo o presente chegado,
Continuam a viver, qual coisa infinda,
Causa de andar por aí muita alma desavinda,
Antes de mais, consigo mesma, assunto sério
Num mundo já de si juncado de tanto despautério
Sem fim. Mas entre as coisas que nos mordem
E que, como o passado, causam dano a um homem,
Outras há, mordidelas também, mas doutro calibre,
As quais variam e são de diversa estirpe,
Desencadeando, na carne, ora prazer, ora dor,
Pois que as havendo de raiva, há-as também de amor,
E por aí diante, com tantas discriminações
Quantas sejam, nas mais variadas ocasiões,
A vontade e a intenção de quem morde.
Isto de morder, fá-lo, obviamente, quem pode,
Mas também, muitas vezes, quem não deve,
O que se aceita, embora de ânimo não tão leve,
Já que este homem, se ser mordido não quer,
Admite, porém, sê-lo, se for mordido por mulher,
Por exemplo, pois que a mordida de tão divino ser,
Por muito que doa, dói sempre, mas com prazer,
Pois que, afinal, a mordida única de que se enferma,
Que frustra, punge, inflige dor e nos condena,
A mordida que causa, em verdade, mores danos,
É se a nós próprios mordemos, e não largamos…

El Rey Ninguém

Nota:  ilustração da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: E não lhe partiram as pernas...")

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