quinta-feira, 25 de julho de 2013

Astigmático-Pragmático

Se calhar não tem qualquer lógica
Ir a essa consulta oftalmológica,
E a razão, por sinal, é bem simples:
É que, embora já não esteja nos vintes,
E a minha visão tenha, na verdade, regredido,
O que agora vejo ainda vejo nítido...
Tenho, no entanto, que estar a curta distância,
Isto já não é como na infância,
Em que via quase até ao infinito...
Agora, até p'ra ler me vejo aflito,
E aqui reside, afinal, o busílis da questão:
É que se corrijo os meus males de visão,
Que desculpa terei para aproximar-me,
Não digo de um livro, mas da carne
Da pessoa, na ocasião, com quem fale?...
Assim como assim, que siga vendo mal,
Que tendo, p'ra ver, que chegar-me ao perto,
Melhor verei o que mais desejo e quero!...

El Rey Ninguém
(rendido a uma lógica oftalmológica...)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Sofazai, mia senhor!...

Torna uno o que era dúplice
E é tão próxima, tão cúmplice,
A relação que com ele acalentais,
Que são infindos os meus 'ais',
E não sei quanto ainda os suporte,
Mia senhor, por ser tal a minha sorte...
É desterro onde meu coração levais,
Enquanto, de mim alheia, sofazais.
Pois sabei a cada sofazadela vossa
Que mais meu peito se dilacera e destroça...

Ei-lo aqui, pouco além de escombro,
Ah não fora ele, mia senhor, redondo,
E fosse, também ele, já agora, almofadado,
E nele pudésseis ter vosso corpo alongado...
E se com ele, por fim, vós fôsseis una,
Não padeceria esta tão triste lacuna,
Que cousa pior não imagino, não há,
Que não sirva para vosso sofá
Este meu coração, recipiente destoutro penar,
Só por nele não quererdes, enfim, sofazar...

El Rey Ninguém
(rendido a um tão expressivo neologismo)

Nota: foto de Delfim Dias.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Ditirambocage

Além, tenho a impressão de que numa laje,
Está escrito teu nome: “Barbosa du Bocage.”
Tenho procurado, mas não encontro em Portugal
Quem o teu talento supere, ou sequer iguale,
Pois entre os nossos poetas haverá poucos
Que, mesmo tendo o seu quinhão de loucos,
Jamais lograram, em seu lírico trabalho,
Chamar à cona “cona”, e ao caralho “caralho”,
Dizer “pentelho”, “esporra”, e não “tufo”, “esperma”,
E amalgamá-lo na folha de um poema
E, com tudo isso, erguer um hino à Beleza…
Oh!, quantos escrevem com uma tal delicadeza,
Tecendo sublimes elogios ao Amor, à Mulher,
Quando, no fim de contas, todos querem é foder!...
E a verdade é que minh’alma fica atónita
Com a cega profusão de tanto e tanta hipócrita
Que camufla, a cada verso, em cada copla,
Um obstinado desejo de foda, de cópula…

Mas tu, Bocage, a quem reverencio e venero,
Pertences que não a essa espécie de clero
Que, do púlpito, profere discursos doutos,
Mas que se fodem, inclusive, uns aos outros!
Dar-me-á razão o tempo de outra era,
De que “cona” é o centro desta Terra,
E o “caralho” – que a imagem te não fira! –
O eixo em torno do qual aquela gira!
Romeus e Julietas, pois são figuras que refutas,
E enalteces, deste mundo, os cabrões e as putas,
E quanto assim escreves, quanto é legítimo,
Que quem tal não seja em seu íntimo,
Suspeito que será Jesus, será Krishna,
Ou, porventura, algum ser alienígena,
Que, não vindo cá p’ra foder à desgarrada,
Não veio, diga-se, a este mundo fazer nada!
Oh Bocage, Bocage, nome vivo em pedra morta,
Quanta gente por ti passa e não nota
Que és qual sempiterno Sol, que brilha
Cada vez que irrompe o tesão na virilha
E somos possuídos por esse indescritível afã
De foder, foder, foder… como não houvera amanhã!
 
El Rey Ninguém
(prostrado, deferentemente, ante Bocage)

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Um Roubo de Planos

Saí a coberto da noite, quando tudo dormia
E vinha ainda bem longe o dia.
Ocultei corpo e rosto com uma capa,
Esgueirando-me, pelo escuro, à socapa,
P’ra que ninguém de mim desse fé.
Cruzei ruas e vielas, tudo a pé,
Atravessando a velha ponte, envolta em neblina,
E desaparecendo, logo em seguida, após uma esquina -
Um vulto resvalando para a sombra…
Ponto negro que em negrume não se encontra,
Assim era eu, da cor do alcatrão,
Ora assomando, ora evanescendo num desvão.
Um pouco à frente, um gato sai-me ao caminho,
Também ele, como eu, um outro tanto sozinho…
Fora isso, apenas quebra o ar a ressonância
Do ladrar de cães, perdidos na distância,
E o surdo tamanquejar sobre a calçada…
Ei-la, enfim, além, erguendo-se destacada,
A casa que desde há horas procuro.
É, tão como eu, vulto omisso no escuro.
Ante a porta, um breve lanço de escadas,
E, ominosas, guardando-o, estão duas gárgulas.
Entro sorrateiro, sem anunciar minha presença,
Galgo uma outra escadaria imensa
E dou comigo no estreito corredor de acesso
Ao atelier desejado. Visitante inconfesso,
Ajo furtivo, silencioso; lá fora, como nada existisse,
Só o rio rumoreja, em seu plácido deslize…
Volto a minha atenção para o postigo.
Espreito. Estou perto de todo o fim pretendido:
É aqui, junto à janela, esquecidos numa mesa,
Que descubro, do Escultor, os rascunhos da Beleza!...
Dou-me pressa e saio, fugindo ao meu crime,
Não acorde o Criador e, entretanto, me fulmine.

Dali os trouxe, junto àquela janela, sobranceira ao rio,
Os planos de quem teu corpo, tão destramente, esculpiu…


El Rey Ninguém

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Vi claramente visto...

Não me sei se agradecido
Ou, porventura, desprezado,
Por em conta não ser tido
Por um nariz empinado…
Este nariz de que vos falo
Sei onde possa esfregá-lo
Sua audaz proprietária,
Que a mim tratou como pária:

‘Esfregue-o, cara Mestra do Franciú,
Nas solenes bordas do meu c*!...


El Rey Ninguém
(birrento por não lhe falarem…)


Nota: imagem de AJ Caseirão, in “Desenho: Santos Clérigos, Beatas e Irmãs Incorruptíveis”