sábado, 26 de novembro de 2011

Na Maternidade da Poesia...

O poema saiu e alguém, na sala de espera, 
proclamou, erradamente, que era meu…


‘Eis o seu filho!’ – disseram, de forma solene;
Mas eu exigi de imediato um teste de ADN,
Porque havia, enfim, traços na sua fisionomia
Que me levavam a pensar não ser minha tal cria,
Pelo que, olhando o doutor, olhando o broto,
Afirmei: ‘Não! O pai tem que ser outro!’
Acrescentei: ‘Isto, aliás, não faz o mínimo nexo,
Nunca com essa senhora cheguei vez alguma a ter sexo,
E se a pluma se me pôs nalgum momento em pé,
Foi só por algum carinho, um beijo, um cafuné,
Mas nunca, jamais, e isso é que é exacto,
Cheguei com ela às ditas vias de facto,
E por isso, sem qualquer dúvida, o declaro hoje aqui:
À Palavra, nem sequer em cuecas, até hoje, a vi!
E assim, essa inominável coisa que hoje foi parida,
Foi com certeza outro, e não eu, o autor da sua vida,
Sinal de que a Palavra - zás trás catrapum! -,
Afinal, é uma devassa: abre as pernas a qualquer um!

El Rey Ninguém
(mas, afinal, quem será o pai do poema...?)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O ano de 74

O ano de 74... 
ou o preâmbulo de uma dieta muito rigorosa! 

Corria o ano de 74
E eu, que andava farto
De comer sempre pão,
Pensei que já seria ocasião
De provar doutra fruta.
Mas onde a abundância é curta
E o próprio pão, que se saiba,
Vem cheio de bolor e saibro,
Não há muito por que escolher
Quando o negócio é comer.
Já trabalho, isso havia com fartura,
Cultivar a terra agreste e dura
Era um ritual dia sim, dia sim.
Pensei noutra coisa para mim,
Que não aguentaria muitos mais anos,
Nos ombros, o peso dos desenganos,
E as mãos, calejadas de trabalho,
E a alma, também metida em tal baralho,
Não suportariam por muito mais
O que já antes de mim os meus pais
Tinham suportado a vida inteira –
Como houvera vida daquela maneira,
Como houvera hipótese de ser feliz
Onde baixar a cerviz
Era tudo o que se aprendia,
Isso, e uns rudimentos de cálculo, de escrita
(P’ra quem tivesse tal sorte…)...
Quando muito, vinha a morte
E um homem, de braços nus,
Assinava c’o corpo em cruz,
Todos os dias da vida gastos
A ler, no céu, os astros,
E a escrever, no escavar da terra,
A história que cada um, afinal, encerra…
Mas depois desse ano de 74
Decidi pôr outra comida no prato;
Coisas comeria por primeira vez,
Como “décimo terceiro mês”,
E outro, que aparecia no prato
De ano a ano – o “décimo quarto” -,
E outros reais acepipes,
Como o sermos livres
E podermos dizê-lo, podermos gritá-lo,
Sem recebermos um estalo,
Um escarro na cara, ou coisa ‘inda mais vil,
E de só cem deveres, ter agora direitos mil!
Mais: não ter, em nós, a alma encurralada,
Trazer, entre os pares, a cara lavada,
Ser-se, enfim, o que naturalmente já se era,
E não passar, pela vida, uma outra inteira de espera!
No restaurante, agora, já tinha direito a talher,
Já era “senhor”, e não um outro qualquer,
E onde fora “tu”, já passava a “você”,
Comia de tudo, até gourmet,
Ah!, tornara-me um biltre,
Comia até sem apetite,
E, como ainda achasse pouco,
Desejava até o prato do outro,
Ah!, eu queria mesmo era comer o mundo todo!
“Olha que estás a ficar muito gordo…” –
Avisou-me a minha mãe, muito séria,
Mas já nem Santa Quitéria
Calmava aquela fome de cão!
Piorou, numa outra ocasião,
Quando ao atafulhado prato meu
Veio parar o conduto europeu
E a acompanhar, uma travessa de regalias
(E a pança a ficar-me com estrias…);
“Tens que comer menos, Carlos…”
Mas como resistir aos robalos?
Até que cheguei ao limite,
Já não controlava o apetite,
Estava obeso que não podia,
Mal me mexia, já não corria, já não fazia
Aquilo do truca-truca…
Resultado: embarquei numa dieta maluca,
Determinado a ficar um dia
Tão delgado quanto uma enguia!
Cortei nos doces e nas jantaradas,
Nas condições de vida melhoradas,
De tudo quanto era nefando
Fui, de bom grado, abdicando,
Até que, vendo-se ao espelho este moço,
Já era só pele e osso.
Mas, orgulhoso de ter emagrecido,
Sentia o dever cumprido,
E não tardei a descer à praça,
P’ra mostrar à gente que passa
O meu perfil renovado.
“Aaahhh… mas estás tão magro!...”
Pois pudera, minha gente,
E o que é nisso surpreendente?
Dizia uma: “Ai eu perdi 20 quilos…”
Outra: “Ai, peso tanto como dois grilos…”
Outra ainda: “Agora já caibo nestas calças!”
E uma outra ia pôr mamas falsas,
Porque, dizia, rejuvenescera
E estava firme que nem uma pêra!
E ainda uma outra – outrora maltrapilha -,
Que, agora, a confundiam c’a filha…
Mas todas estas argumentações
Não eram senão míseros tostões,
Quando, dando-lhe c’a força toda,
Lhes abri de tal guisa a boca:
“Pois eu, de oitenta e picos p’ra cá, amigos,
Fora o resto… já perdi dois subsídios!!!
E com esta calei tal gente,
E vim-me embora, magriiinho… e contente?

El Rey Ninguém
(de tanga, de cinto apertado… tudo!)


terça-feira, 22 de novembro de 2011

E a chuva batia na minha janela...


E a chuva batia na minha janela…
Mas não batia nem leve, nem levemente,
Nem ninguém chamava por mim!
Batia de forma assaz pungente
E andavam todos num frenesim,
Pois partia tudo o que era vidro,
E eu, é claro, começava a ficar fo…lixado!
Depois, parou por um bocado,
Mas logo voltou a cair sobre o cascalho…
Raios! Vontade de mandar tudo pó ca…catano!
Parecia que ia chover todo o ano,
Caindo, caindo, numa infinita queda…
Pisei algo: seria lama?, seria me…outra coisa qualquer?
Andava lá fora uma mulher
A passear c’os seus dogs
Gritei: ‘Sai daí, senão ‘inda te fo…molhas!'
Ah!, num dia assim não há grandes escolhas:
Quando a chuva cai c’a força toda,
Fico em casa, e o resto, que se fo…molhe!

El Rey Ninguém
(a quem saíram tais palavras,
mercê da invernia)



quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Urna de voto do devoto

Fora esta Vossa Majestade àquele lugar onde, indo um português, vão logo dois ou três, e estando a fazer o que é de natureza e obrigação que ali se faça, descobriu, por interpostos ruídos e odores, que em tais alívios do metabolismo era circunstancialmente acompanhado por algum nobre fidalgo, a julgar pelo timbre aristocrático com que eram os ventos despedidos na reclusão do cubículo onde se recolhera p'ra fazer força...  
E eis então que a imaginação, entregando-se a esforços quejandos, me resvala para o seguinte:


Haverá, porventura, sítio mais ignoto
Do que uma urna de voto
Para se encontrar um amigo?...
Pois talvez não, e bem vos digo
Que não entrevi outro pior,
E eu conheço muitos, alguns de cor,
Sítios que não lembra ao diabo,
Onde coisas inomináveis vão a cabo,
Fora outras que, por tão incríveis,
Melhor é que permaneçam indizíveis…
Assim, ali, onde a democracia tem raiz,
Perguntei se já pusera o xis
Ao eleitor de circunstância,
A quem respeitei estatuto e distância,
Não querendo perturbar o seu egrégio acto,
Embora, estranhamente, me prevaricasse o olfacto,
E soltasse, igualmente, uns tais cavos suspiros,
Que montavam, por vezes, à dimensão de tiros,
Sinal de que haveria turbulência
No seu exame de consciência,
E sobre o xis, naquela folha preciso,
Estaria o votante, afinal, mui indeciso…
Assim como assim, interpelei-o:
‘Direita ou esquerda? Olha, vota no meio,
Que talvez seja o mais Seguro.
Mas quando votares, vota duro,
Não votes assim a espaços…
Mais: se for necessário, vota no Passos,
No Jerónimo ou no Louçã,
Só não deixes para amanhã
Esse teu dever eleitoral,
Porque amanhã… pode não haver Portugal!’
‘Pois olha’, respondeu-me, ‘e já que estou aqui,
Votarei, de igual modo, no FMI!
Voto mais útil não há…’
E nisto saiu, vociferou: ‘Já está!’
E ainda acrescentou: ‘Não me importo
De que vejas o meu voto.’
Acerquei-me, com respeito, daquela urna,
E certeza, só tinha uma:
De que naquele espaço discreto
O meu amigo votara no sítio certo.
Disse-lhe, então, com bons modos:
‘Votaste bem. Votaste neles todos!
E cioso de um tão intestino nacionalismo,
Fiz-lhe o favor… e puxei o autoclismo!

El Rey Ninguém 
(sometimes you simply and literally 
have to go with the flow...)

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Lusitanamente...gregos!


 Há uma fatalidade para a qual andamos cegos,
E o pior é que nem toupeiras:
É que, na verdade, somos ora mais gregos,
E de muitas, variegadas maneiras.
Afinal, anda por aqui em uso
Um tal sistema de governo
Que não é, de origem, luso,
Mas teve helénico berço materno.
Já isso se obedece, ou não,
Ao democrático espírito original,
Isso não é objecto de razão
Cá nos confins de Portugal.
E há depois esta nossa característica
De tanto nos ralar o porvir,
E esquecemo-nos, com tanta casuística,
Que, para a gente se conseguir,
Vimo-nos gregos, e a valer!
Mas no meio de toda esta constatação
Há ainda e por fim que perceber
Que a fatalidade passou até a maldição,
Desde que, e em hora tão informe,
Nos vimos neste país governados
Por um tipo que, de filósofo grego, tinha o nome,
Mas carecia dos filosóficos predicados
Que fazem um homem honesto e sério!
E isto sem falar noutro campo
Em que o helenismo exerceu magistério
E a bem dizer nos limpou o sarampo,
Vindo à nossa terra, à beira-mar plantada,
De tão vastas paisagens, límpido céu,
Infligir-nos duas derrotas de enfiada,
Levando para casa o futebolístico troféu!
E para acabar – mas para acabar mesmo! -,
Vemo-nos agora mais gregos do que nunca,
Pois enquanto a velha Europa anda a esmo
E qualquer palácio vira espelunca
E os seus mármores viram calhaus,
Pois eis que agora, gregos a toda a prova,
Somos arrastados para o kaos,
Com um pé no abismo, outro na cova!
Mas eu já estou preparado para o fim:
Tenho, em casa, um jarro cheio de cicuta,
E enquanto a Europa subsume num frenesim,
Eu cá mando à fava esses europeístas filhos da p***!

El Rey Ninguém
(eivado de um grande instinto gregário –
ou será que eu queria dizer…grego?)