sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Coisas que nos mordem...


Há que ver que até ao presente dia
Tem sido longa e multifacetada a travessia
Deste homem que, sem dar hora por perdida,
Se perdeu e encontrou muitas vezes na vida,
E se a gente só se arrepende do que não vive,
Então creio-me no direito e sou livre
De afirmar, sem qualquer sentido obscuro,
Que só nos podemos arrepender do futuro,
Pois que o futuro – assim, pelo menos, o vejo eu –
É sempre e ainda só aquilo que se não viveu,
O que não quer dizer, por palavras menos belas,
Que não nos venha morder as canelas
Esse por vezes feroz animal, que é o passado,
Que uns, mesmo tendo o presente chegado,
Continuam a viver, qual coisa infinda,
Causa de andar por aí muita alma desavinda,
Antes de mais, consigo mesma, assunto sério
Num mundo já de si juncado de tanto despautério
Sem fim. Mas entre as coisas que nos mordem
E que, como o passado, causam dano a um homem,
Outras há, mordidelas também, mas doutro calibre,
As quais variam e são de diversa estirpe,
Desencadeando, na carne, ora prazer, ora dor,
Pois que as havendo de raiva, há-as também de amor,
E por aí diante, com tantas discriminações
Quantas sejam, nas mais variadas ocasiões,
A vontade e a intenção de quem morde.
Isto de morder, fá-lo, obviamente, quem pode,
Mas também, muitas vezes, quem não deve,
O que se aceita, embora de ânimo não tão leve,
Já que este homem, se ser mordido não quer,
Admite, porém, sê-lo, se for mordido por mulher,
Por exemplo, pois que a mordida de tão divino ser,
Por muito que doa, dói sempre, mas com prazer,
Pois que, afinal, a mordida única de que se enferma,
Que frustra, punge, inflige dor e nos condena,
A mordida que causa, em verdade, mores danos,
É se a nós próprios mordemos, e não largamos…

El Rey Ninguém

Nota:  ilustração da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: E não lhe partiram as pernas...")

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Plano Reclinado


Desde o aromado fosso,
Segue a linha espinal de osso
De encontro ao cilindro do pescoço,

Onde o cabelo tece indizível teia.
Aí a mão, resoluta, se enleia,
Outra se ergue, e aquela freia,

Impondo mais paulatino ritmo.
Entre a carne e a carne o istmo
Semelha, na pose, quem dá ao signo

Nome que é oitavo no zodíaco.
O compassado vaivém do ilíaco
Orvalha a polpa ao fruto genesíaco

E eleva ao ápice, ao zénite,
Ponto culminar de todo o frémito:
Estame, carpelo: em uníssono débito!

E sobre a indefesa corola se inclina,
Por fim, polinizadora, a antera masculina,
E a figura que elanguesce assim reclina…

El Rey Ninguém 

Nota: ilustração da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: Figuras Reclinadas").

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Alibi


O facto é que eu não me sabia
Com tanto jeito para a alquimia,
E dei por mim siderado, aturdido,
Tendo à vida descoberto o sentido
Que cada coisa guarda de mais íntimo,        
Embora não necessariamente explícito
A quem não ande dele à procura.
A realidade é só uma, e é dura:
Todo o sentido que se demanda
Esconde-se na percepção que nos engana
E nos diz que tudo é longínquo,
Impalpável, invisível. Não acredito,
Porque quanto descobri, afinal, contraria,
E é, por isso, quase uma heresia:
Que a vida jaz, latente, ao instante,
E a quinta-essência está tão distante
Quanto, talvez, a primeira,
E é esta a ordem, a lição derradeira,
E eu, por bênção de Deus, descobri-a.
Porém, por simples aversão ou azia,
Vou ocultá-la, mantê-la na penumbra,
Esperar que ninguém mais a descubra;
Mas, para isso, pelo que já percebi,
Vou precisar de um sólido alibi:
Não só me converterei num campónio,
Como contrairei, desde logo, matrimónio
Com uma tipa, de preferência, ávida
De estabilidade – nomeadamente, grávida -,
E que tenha lido as histórias dos irmãos Grimm,
Afinal acreditar no Amor não é crime,
P’ra todo o sempre é que já tenho a sensação
De ser qualquer coisa perto de histeria, alucinação,
Não sei bem, porque não é o meu campo.
Viver perto dos sogros e do serviço ajudará, entretanto,
A adensar esse estado de psicose –
P’ra se manter tão elaborada pose
E angariar, enfim, a tão almejada paz,
O quanto um homem por si não faz…
Outrossim usarei um fato com vinco,
Que ostentarei entre as nove e as cinco
Num emprego que me obrigará a sorrisos
Por entre derrapagens e prejuízos,
Porque a realidade, se importa,
É coisa em que já ninguém nota…
Deixar andar, deixar correr, deixar fluir,
Não me ralar com o ainda por vir,
Importante, mesmo, é manter a aparência,
Usar astúcia, ardil, paciência,
E fingir, acima de tudo, que se concorda.
O trabalho é missão e o amor não é foda,
Pois, afinal, apesar de ser espontâneo,
É tudo, mas mesmo tudo, menos momentâneo…
Contudo, em tudo isto, coisas haverá que não entendo:
Ter que ser o que se vai parecendo,
Estar conforme previsões, expectativas,
E, depois, receber aplausos e vivas,
Ir cumprindo o papel que incumbe,
Parecer o corpo vivo onde a alma já sucumbe,
Dar a entender, ilusoriamente, que se é daqui!
Ah, a quanto me obrigas, alibi,
P’ra que eu vá sendo o que abomino,
E aceite, tacitamente, um tão mísero destino.
Não vou ser o delator, não denuncio
Que jaculo, ejaculo, copulo mesmo sem cio,
E que todo eu, omitindo verdadeiro fogo,
Sou evasão, simulação, sou logro,
P’ra que ninguém perceba ou lobrigue
O quanto há em mim que me distingue
Entre toda esta amálgama de gente:
Que eu caibo assim, enquanto con-vivente,
Mas, sob esta capa diluente e avulsa,
Há algo puramente vivente que emerge, e pulsa…

El Rey Ninguém

Nota: ilustrações da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: Quadro Clínico - Psicose Maníaco-Depressiva")