quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O Bom, o Mau, e o Estado

Vem a ser esta uma história
Não sei se digna de boa memória,
Coisa p’ra entreter ou p’ra ensinar,
Mas que, todavia, nos põe a pensar
Sobre tudo quanto é obrigação
Que deveríamos pagar, ou até não,
Conforme a educação que se nos deu
E o caminho que depois se percorreu…
Mas deixemos de conversa
E vamos ao que a dita reza:
Vieram ao mundo dois pimpolhos,
Ambos um regalo para os olhos,
Mas que, ao se fazerem gente,
Mostraram um feitio tão diferente,
Que ninguém na terra diria
Serem fruto daquela mesma enxertia.
Um deles, sempre fora traquinas,
Era um polidor de esquinas
Que só se metia em problemas,
Em mil e um esquemas –
Enfim, responsabilidades? Está quieto!
O seu viver era incerto.
Já desde a primeira classe
Lhe caíra, redondo, o disfarce:
Estudar, coisa que não lhe apetecia,
Copiar, pois era quanto podia,
E assim lá se ia safando,
Com reprimendas de vez em quando,
Obtendo notas até bem razoáveis,
Mais altas do que as de meninos responsáveis,
Que tudo cumpriam à risca.
O oposto desta alma tão arisca
Era o outro, que pertencia ao grupo
Dos que faziam tudo
Quanto lhes era pedido,
Tanto que depois, já crescido,
Nele nada pudera mudar:
Era o cidadão exemplar,
Respeitador, cumpridor, alma isenta,
Daquelas que apenas se contenta
Com o ser-se certinha, obediente,
Como deveria ser toda a gente,
Na convicção de que, juntando agora,
Lá chegará, mais tarde, a hora
De gozar os proventos do trabalho…
Quem o achava, porém, um paspalho
Era o outro, cuja vida
Não tinha conta, peso e medida:
Corria todo e qualquer risco,
Não descontava, fugia ao fisco,
Na sua opinião, o Estado
Só merecia ser enganado,
E, por isso, não dava cavaco a ninguém!
Para o outro, Estado era pessoa de bem,
E, por isso, do seu salário
Descontavam o que lhe diziam necessário
Para as despesas do referido,
P’ra que fosse o cidadão protegido
De aldrabões como o amigo!
Porém, donde espreita o perigo
Nunca se pode saber ao certo,
E assim atingiram o tecto
Da carreira contributiva,
Uma vez chegados à idade da vida
Em que se penduram as botas.
Mas Deus, por linhas tortas,
Escreve às vezes torto também…
Ora vejamos: o paladino do Bem
Contava com generosa reforma,
Pois, se descontara, a norma
Era que colhesse o devido;
Quanto ao que não houvera cumprido,
Tinha reforma, sim, mas miserável,
Resultado de não ser responsável,
Tal como o outro cidadão.
No entanto, na sua vida de aldrabão
Acumulara umas somas bestiais,
Que depositara em paraísos fiscais.
Ria-se o cumpridor deste valdevinos,
Que é como nós nos sentimos
Quando julgamos que a pensão
Nos vai dar vida de sultão
E a hora nos faz desdenhar
De quem não fez caso de poupar.
Mas viva a chico-espertice!,
Já que o Estado, a coberto da crise,
Cortou a torto e a direito
Na reforma daquele cidadão de respeito,
Deixando, por sinal, intacta,
Sob pretexto de muito parca,
A reforma do trafulha!
— Afinal, o Estado é um pulha!...
Lamentava-se o prejudicado,
Chorando convulsivamente, desconsolado.
Disse então o outro, perante um tal enjoo:
— Isso já eu sabia! Por isso, nunca me enganou…


El Rey Ninguém