terça-feira, 31 de julho de 2012

Queixume a Carl Jung


Tanto e tão agudamente me punge
O que escreveste, Carl Jung:
“Tudo aquilo que não enfrentamos
Torna-se o nosso destino.” Convenhamos,
Carl, que essa me é difícil de engolir,
Mas cheguemos ao ponto de admitir
Que assim seja (e eu aceito-o),
Temo, porém, que o meu derradeiro leito
Não deva ser o ortodoxo.
Não sei, também, se um poço
Venha a ser o mais prático,
Posso contaminar o lençol freático,
E se podre já me assumo,
De água imprópria para consumo
Não quero eu que me imputem,
Apesar de toda a pátina, toda a ferrugem
Que me recobrem a pele,
Fora quanto segrego de fel…
Isto, porém, é coisa de pouca monta,
O podre cá dentro é que conta,
E esse, Carl, to garanto,
Gera mais câncer que amianto,
E se é que a alma, verdadeiramente, prescreve,
Pois bem, Carl, tumba não me serve,
Vala comum muito menos,
Nem o crematório, para os enfermos.
Aquilo que trago cá dentro,
E que raramente ou nunca enfrento,
Não cabe em tais medidas:
Fraquezas, covardias, tendências suicidas,
A palavra que se quebra,
Vísceras, vasos, nervos, merda –
Tudo isso, Carl, terás que admiti-lo,
Mas nem sequer um silo
Servirá, para tanto, de sepultura.
Não vou mais a tempo da cura,
Carl, já disso estou certo,
Não estranhes, assim, que meu féretro
Não seja o convencional,
Nem queira enterro formal...
Carl, enfrentar que não me enfrento
É quanto deixo em testamento.
Quanto a ti, inuma-me, onde e quando quiseres,
Conquanto em séptica fossa me enterres…

El Rey Ninguém
(indo-se, por indeterminado período…)

Nota: ilustração da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: A verdadeira beleza é interior.")

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Infamigerado


Não sou aquilo que vos pareço
E tudo quanto vos peço
É permissão para uma infâmia.
A minha face engana,
Desculpem que vos frustre,
Mas a minha decência é um embuste,
Palavra que vos tenha dito
Seria por estar aflito
Com falta de dinheiro no bolso,
Estar co’ a corda ao pescoço,
Ou qualquer coisa assim.
Não vos condescendais de mim,
Que nada vos peço doutro mundo,
Só isso mesmo: um insulto,
Poder escarrar na sopa,
Receber uma esmola e dizer que é pouca,
Não respeitar contratos,
Ser responsável pelos actos
Que cometa, tudo bem,
Mas noutra vida mais além,
Porque nesta em que me apanho
Todo o meu empenho
Está em trazer à superfície
A maior filha-da-putice
De que possa haver memória.
Eu quero, na minha história,
Uma página escrita a negro,
Um foco de desassossego,
Um vómito sobre o passeio
E andar com falta de asseio
Por entre as pessoas ditas civilizadas.
Eu já não quero saber: abram alas,
Que eu, a quem aprouver,
De bom grado lhe cubro a mulher,
E à filha, p’ra ser prático,
Inclui-la-ei no rito iniciático!
Isso de ser pessoa com modos,
Ser santo por vocês todos,
Para mim já não chega,
A minha própria alma renega
Qualquer moralidade, rechaça a ética,
Que importa que morra anoréctica
À míngua de alimento espiritual?!
Preocupa-me, apenas, o pessoal,
E, pessoalmente, não me preocupo
Com nada, senão c’ o estupro
De códigos de conduta.
Vós, que tendes vista curta,
Dai-me lá uma abébia,
Que eu trago em mim uma caterva
De maldades em embrião
À espera, assim, de uma ocasião.
Eu já passei pela Santa Sé
A requerer o auto-de-fé,
E se acharem vazio o meu espaço,
É simples: estou no Terreiro do Paço,
Entre tanto outro,
A ser purificado pelo fogo.
Envergonhei-me de ser só esperma,
Cansei-me de ser poema,
Quis ser o grito gutural,
Primitivo, de um Neanderthal,
Eco de alma ainda insana,
Tudo só pela infâmia
A que, julgo, tenho direito.
Estraçalho, rasgo o peito
Em súplica, mas vós,
Paladinos da tolerância, vós
Nem isso me concedeis…
Não!, parem!, não inventem mais leis,
Só essa (o resto que se dane):
A de, por um instante, ser infame,
Ser o que se espera, mas do avesso –
É tudo o que vos peço!...

El Rey Ninguém  
(descarnando-se para reencarnar...)

Nota: ilustrações da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: Da ressurreição de Lázaro")

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Lei da Selva

Rei desta e doutras selvas
vem a ser o felino Relvas:
por ostentar tão farta juba,
canudo lhe assenta que nem luva.
Outros animais, porém, estão aflitos,
porque o maior dos pré-requisitos
para longe, nesta selva, se poder ir
é mostrar tamanho e rugir
desde seu pseudodemocrático sólio.
Daí se ordena o espólio
onde o leão, de poder enfermo,
põe pata sobre o pequeno,
o qual, pobrezito, não tuge nem muge,
Quanto mais sequer ruge!...
Está visto: até na selva há ocasiões
em que gatos, subitamente, se diplomam leões!...

 


El Rey Ninguém
(dedicando a composição ao Relvas, seu gato de estimação, que tem a mania de se enfiar, à força toda, dentro de canudos e de andar a comer relva - e daí o epíteto...)

Nota: imagem retirada de: http://gatometaleiro.blogspot.pt/