sábado, 22 de outubro de 2011

Dona Culpa

Na minha rua – rua da Saudade -,
Também mora uma senhora,
A qual, apesar já da sua idade,
Mantém intactos, da sedutora
Que foi em tempos,
Quase todos os predicados,
Que foram, em verdade, tormentos
Para homens de todo arrebatados
Pela sua avassaladora beleza,
Mais que suficiente razão
Para que a tal princesa
Quiseram tomar a mão
Em sagrado matrimónio,
Acenando-lhe com largo dote,
Benesses de património
E vantagens de toda a sorte, 
Coisas que à dita,
Em benefício da verdade,
E apesar de formosa, e bonita!,
Como foi até tão tarde,
De pouco valeram ou nada,
Pois que o seu coração
E a sua alma apaixonada
Caminhavam noutra direcção,
Pois quer esta,
Quer o outro primeiro,
Eram, e não de forma funesta,
Ela cativa, ele prisioneiro,
Dos encantos e defeitos
De quem por ela não tinha,
Por ter provado tantos leitos,
Mais que a paixão comezinha
De quem nada mais vê
Na figura da mulher
Do que um meio de prover
A quanto se deseja e se quer.
Era este moço o filho
Não de gente letrada e sábia,
Mas antes um ambulante sarilho
Dotado de muita lábia,
O qual, devido a mulheres
Já ter tido muitas,
Delas esperava não mais que os prazeres
E outras mais coisas gratuitas.
E como esta minha vizinha
Sonhava, ardentemente, co’ a ocasião
Em que não estaria mais sozinha,
Mas em estado de união
Com esse referido crápula
(o qual, mal disto deu conta,
A quanto podia deitou manápula…),
Fez o papel da tonta
Que está disposta e acredita
Em tudo quanto lhe dizem,
E é bem capaz, mui contrita,
De se ir mantendo virgem
Para o dia de ter meninos,
Guardando-se, de forma ascética,
Para quem era, afinal, um valdevinos
Sem quaisquer escrúpulos, moral ou ética!...
Tal fulano, pilantra com pinta de burguês,
Vá-se lá agora descobrir,
Era um político português
Que passava a vida a sorrir
No meio de grandes desgraças,
Urdindo, com subterfúgio,
Grandes logros, grandes farsas,
E procurando sempre refúgio
No que os outros – não ele! –
Tinham dito ou feito alhures,
De molde a safar a pele
E sair limpinho de negócios obscuros!
Mas nele acreditou uma nação inteira,
Uma mão cheia de gente estulta,
E é também por ele que morrerá solteira
A minha vizinha, ainda que sedutora… Dona Culpa!

El Rey Ninguém
(a pensar nas palavras de José Mário Branco:
“A culpa é de todos em geral, 
mas não é de ninguém em particular!” Ora pois sim!…)

domingo, 16 de outubro de 2011

Vendo, e a bom preço!

Como é da praxe domingueira, um homem sai do seu castelo, desce a avenida e vai, placidamente, num passeio sazonal, até à zona ribeirinha, na vaga esperança de que uma tágide assome à flor das águas, de peitos desnudados, e assim anime um pouco esta já de si muito enferma alma lusitana
Mas quando um homem regressa ao seu castelo, sem ter tido sequer um vislumbre dessas ninfas fluviais, o seu olhar e a sua atenção acabam por se deter naquelas coisas em que, na viagem de ida, não chegara a reparar, como, por exemplo, às portas dos ministérios (desde o da Economia, passando pelo das Finanças, e acabando no da Justiça….), enormes cartazes proclamando:
STOCK OUT!
LIQUIDAÇÃO TOTAL!
SALDOS!
VENDE-SE!

Ora, tal me sucedeu, e não querendo ser do contra, não fui de modas e mandei abrir a cisterna do meu castelo, a fim de ver se não teria eu por lá alguns monos de que me pudesse desenvencilhar a bom preço, aproveitando, assim, a onda reinante, se é que me faço entender.
E o facto é que encontrei bastantes, tanto que não hesitei, e eles aqui se encontram. Façam as vossas licitações, senhores!


VENDO
Uma chusma de políticos portugueses,
Que em pouco mais que ½ dúzia de vezes,
E sem qualquer moral ou decência,
Levaram este país à falência

VENDO
Um político gordo e pançudo,
Armado em Sebastião Come Tudo,
Que se avilanou, comendo até fartar,
Deixando, a mim, a conta p’ra pagar!

VENDO
Um Fulano muito sério e não sei até se presidente,
Que agora, que anda o Zé Povinho penitente,
Pois pão p’ra comer não tem, já não há,
Se esqueceu, por magia, de quando foi Ali Babá

VENDO
Um eleitor português - afilhado do autarca sujo até à medula,
Condenado por pecado de cobiça e outrossim de gula -,
O qual vem, para o Marquês, berrar como outros muitos,
Que, em Portugal, os políticos… são todos uns corruptos!

VENDO
A essa gente iluminada, que se diz tão séria,
Que jura que isto, assim, é que vai ficar melhor,
Vendo, a pronto pagamento, a minha conta offshore,
Sediada no paraíso fiscal da…Porca Miseria!

VENDO
Relíquias do saudoso Capitão Salgueiro Maia,
Que embora repousando em boa paz,
Se nos vira governados por esta laia,
Veria que tanta falta ora nos faz!...

El Rey Ninguém
(sem saber se está em liquidação,
ou se já está liquidado…)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Monólogo da Formiga

Uns não conseguem, mas há quem consiga
Encaixar-se, por inteiro, no seu papel de formiga,
E isso não querendo, aquém de qualquer quimera,
Ser-se a cada instante, pois claro, o quanto de si se espera.
Assim, outros, taxando os demais de cegos, vesgos, ou zarolhos,
Quiseram ser mais, quiseram, inclusive, ser piolhos,
Porque queriam ir além do que eram, além do seu meio,
Nem que a custo de chupar o sangue alheio!...
Outros, adoptaram diversa pose
Com que camuflam uma tremenda psicose,
E é tão mais que comendo os outros, e até os seus,
Deixam de ser formigas, e passam a ser louva-a-deus.
Outros, por seu turno, se lhes chegam pelos joelhos
As marés do trabalho, decidem virar escaravelhos
E exercem uma arte dir-se-ia assaz furtiva,
Que é dar cabo daquilo que quem trabalha cultiva.
Outros, ainda, especializam-se na maquinação de conflitos,
Convertem-se numa espessa nuvem de mosquitos
E nada fazem do quanto fora preciso,
E o melhor que produzem é esgotar-nos o juízo!
Outros, à pala de evasivas considerações,
Metamorfoseiam-se em perigosas vespas, ou vespões,
E andando sempre à cata de inocular o espigão,
Todo o rastro que deixam é uma colossal inflamação!
Mas eu… eu não! Térmite, obreira ou rabiga,
Sempre me contentei em ser formiga;
Trabalho, suor e pão sempre foram minhas verdades,
E nunca fui formiga além das minhas possibilidades…
Trabalhei, e recebi por quanto trabalhei,
E quanto aos outros, simplesmente, não opino nem sei;
Só sei que se com ser formiga vivo a contento,
Porque vêm libelinhas mandibular-me o sustento,
Arguindo que fora por viver acima do que podia…?
Mas como assim? Eu, que consumi menos até que produzia…?
E é tudo isso quanto, afinal, a mim me intriga,
Eu, que toda a vida tenho sido, apenas e só, uma formiga

El Rey Ninguém
(possivelmente formiga,
possivelmente no carreiro,
possivelmente em sentido contrário…)

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Vale a pena pensar nisto...


Austeridade e mais austeridade, ad nauseam e, pior ainda, segundo parece, ad eternum, conduzir-nos-ão, sem apelo nem agravo, pois com certeza, a uma nação de ascetas!
E um homem, convertido numa espécie de ilha rodeada de agiotas por todos os lados, decide reduzir o seu diâmetro de acção ao pouco que ainda lhe reste de prazer neste mundo, fiado em que, suceda o que suceder, talvez isso, ou apenas isso, enfim, escape a este quase açambarcamento vital, que é o que é!
Por isso, hoje…

Hoje penso, só e unicamente,
Sem quaisquer restrições, em sexo
(Ou quiçá o que para a humana gente,
Ao cabo de tudo isto, faça ainda algum nexo…).
Só isso e apenas tanto como isso: o sexo.
Adeus a todo e qualquer sistema complexo,
Adeus ao preocupar-me com o sucesso,
Adeus ao ser, à força, todo aquilo que pareço,
Adeus à felicidade a qualquer ou sem preço,
Adeus ao aniversário que sempre esqueço,
Adeus ao 'beijinho', ao 'fofinho', e ao amplexo,
Adeus ao que mais me deixa perplexo,
Adeus ao ‘sei quem fui, mas não confesso’,
Adeus ao andar direito, mas voltado do avesso,
Adeus às palavras que digo, mas que não meço,
Adeus aos deuses que, por vergonha, já não professo,
E só isso e apenas tanto como isso: o sexo;
Porque tudo o mais já é velho, desenxabido, e recesso!...

El Rey Ninguém
(pensando... no que toda a gente pensa)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Eu tive um sonho... (Parte 1)

'Let us not wallow in the valley of despair, I say to you today, my friends. And so even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream..."

Martin Luther King


 E eu? Não tive eu, também, um sonho...? 

Eu tive um sonho, de que um dia
Esta nação se ergueria
E se poria novamente em pé,
Como já não há muito,
E então viveria
A pura e absoluta epifania
De tudo quanto podia ser, mas não é,
Tendencialmente gratuito!...

Eu tive um sonho, de que um dia,
Na cantina de uma fábrica,
Patrões e proletários
Juntar-se-iam num banquete
Em que haveria,
Por entre a partilha e a dádiva,
Bebidas e petiscos multivários;
E usariam a mesma retrete!

Eu tive um sonho, de que um dia,
Mesmo à Marinha Grande,
Essa terra de vidreira gente
Que o medo fez em cacos,
Alguém, pelo seu pé, voltaria,
E diria, como quem mande:
‘Meus senhores, se o pedido não ofende,
Venho levar o resto dos sopapos!...’

Eu tive um sonho, de que um dia
Os meus filhos viveriam num país
Em que pelo seu próprio mérito
Se lhes abririam janelas e portas,
E qualquer um julgá-los-ia
Pelo fruto, e não pela raiz,
Ou pelo hábito decrépito
De colar cartazes nas Jotas!

Eu tive um sonho esta noite, meus irmãos!

Eu tive um sonho, de que um dia,
Lá para os lados de S. Bento,
Com os seus políticos habilidosos
Especialistas em fazer merda,
Subitamente, como por magia,
Como um espontâneo movimento
De gestos e vozes,
Unir-se-iam direita e esquerda!...

Eu tive um sonho esta noite, meus irmãos!

Eu tive um sonho, de que um dia
O vale do Tejo seria exaltado
E as colinas de Lisboa aplanadas,
As ruas esburacadas preenchidas,
E cada viela tortuosa teria,
P’ra seu restauro, novo traçado,
P’ra termos as revoluções facilitadas
Às massas oprimidas!...


Eu tive um sonho...

El Rey Ninguém

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

La Demoiselle de Hávinhobom

Dizem que a Justiça é cega – é um facto! –,
O que faz com que a provecta demoiselle
Se veja forçada a recorrer ao olfacto,
P’ra perceber quem prevarica e é cruel,
Por um lado, e, por outro, está bem claro,
Quem é que, ao tortuoso caminho e amaro

Do crime, da fraude, da burla e dolo,
Prefere, em vez, o da virtude e rectidão,
Buscando, em seu colo, enfim, o consolo
De saber justa a espada em sua direita mão…
Só que a balança, mercê de tanto ano,
De quando em vez permite um engano:

Uns gramas a mais, outras vezes a menos,
Com o prato a inclinar-se, pronunciadamente,
Para o lado não dos fracos e pequenos
Sinal, está visto, bem por de mais evidente
De que urge engendrar a calibragem
Dos pratos símbolo de uma mensagem

Que, com o tempo, a pouco e pouco se esboroa,
Como, de resto, tudo o mais à sua volta…
Assim é no reino cuja cabeça é Lisboa,
Onde, assim parece, anda a ferrugem à solta,
Carcomendo os pratos, que se quereriam agudos,
De modo que favorecem quase sempre os graúdos

‘Aqui d’El Rey!’ – grita-se a pulmão cheio;
‘Há que pôr boa essa balança, pô-la em ordem,
Pois se não há quem a isto ponha freio,
Então justiça é só p’ra uns poucos que podem!'
Deus nos ajude, e nosso Senhor Jesus Cristo,
Pois que é isso o que mais entre nós se tem visto!

Mas desde já vos digo: a coisa não está fácil!...
Restringida, por natureza, ao exercício do olfacto,
A Velha Senhora fica nas mãos de gente assaz hábil
Que consegue pender p’ra onde quer o dito prato;
E p’ra isso, meus amigos, há técnicas infalíveis,
Para, mesmo culpados, jamais passarem de presumíveis!

Uma delas, como todo o bom dia se vê,
Consiste em entupir-lhe as fossas nasais,
Não com pólen, ácaros, pimenta, ranho ou rapé,
Mas com um corrimento de erros processuais!...
A outra é pôr nos pratos, tornando difícil calibrá-los,
Pois queiram lá saber… uma caixinha de robalos!...

El Rey Ninguém
(a ganhar balanço
para não ser pesado em tal balança…)