sábado, 22 de dezembro de 2012

Presépio q.b.

A novidade é que o Bento XVI
Foi de inventar novo artifício,
E virou fazedor de leis
Para o presépio natalício!...
P’ra começar: a vaca, fora!
Basta chamar alguém de vaca
Para se perceber na hora
Que só é coisa que se faça
A quem trabalhe por fora,
Naquele mester secular
A que uns chamam prostituição.
Ter uma vaca ali a assoprar
Ao Menino Jesus, isso não!
E quanto ao burro, está visto,
Ainda menos razão p’ra sorrir,
Até porque o burro é bicho
Que vacas, amiúde, acabam por parir…
Reis Magos, também não fazem falta,
Reis são coisa de monarquia,
Desde a Revolução Francesa que a malta
Vem preferindo a democracia.
Quanto a S. José, que dizer?,
Não chega a ter papel activo,
E que diferença pode fazer
Um pai que só é pai putativo?
Pior seria, muito pior, bem entendido,
Ter uma mãe, com licença, putativa,
Oh quão ficaria o Menino mal servido!...
Se é puta ou não, da fama não se livra,
Mas tal não é o caso da Virgem,
Pois, como o próprio nome indica,
É pura, e se é como dizem,
Minha pluma assim se fica.
Isso mesmo! O Menino e sua Mãe
É quadro que traz consolo,
Mas p’ra ficar mesmo bem,
Ponham-lhe o Menino ao colo!
Assim, só resta a palha, como sabeis.
O que lhe havemos de fazer?
Pois dêem-na ao Bento XVI,
Que dela faça o que entender!...

El Rey Ninguém
(numas palhinhas esparramado...)

Nota: ilustração da autoria de AJ Caseirão, in "Desenho: Santos, Clérigos, Beatas e Irmãs Incorruptíveis".

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

pobrexploração

a exploração
da mão
da mão-de-obra
que cobra
e não sobra
mão-de-obra
barata
do cidadão
a mão fica farta
de abrir a lata
de grão
‘tá ficando amargo
ser burro
burro de carga
sem cargo
e comer lata
de comida
comida para cão
e assim a vida
empedernida
‘stá f*dida


assim não vai dar, não
pôr a mão
do cidadão
no bolso
do cidadão
só tem caroço
não tem fruta, não
é só pele e osso
essa mão
a mão
a mão vazia
que um dia
levou à boca a ilusão
assim não dá mesmo, não
ai a pobrexploração
da mão do cidadão
outrora
como agora
meu irmão…

el rey ninguém

Nota: ilustração de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: Do Exército do Quinto Império").

sábado, 27 de outubro de 2012

Chutar cavalo


A primeira vez não custou nada:
entre amigos, numa noite bem passada,
alguém me convenceu a experimentar.
Hesitei, mas acabei por concordar.

‘Só uma vez não fará mal,
não dará cabo do metabolismo vital…’

Pensei, na inocência dos meus dezoito.
Mas aquela vez foi apenas o introito
de uma série de vezes, em torrente,
julgando que, assim, me faria gente,
seria parte do grupo – mas que ilusão!
Tanto que à segunda ou terceira ocasião,
embora já me tivesse custado menos,
e todos garantissem: ‘Nós também já fizemos…’
Comecei logo a sentir mãos invisíveis,
que eram como forças incríveis
que faziam de mim qual marioneta…
Mas de que era aquela a via certa
logo alguém tratou de me convencer,
e que seria fraqueza, cobardia, não o fazer.

O que meus pais juntaram, com tanto sacrifício,
viria depois a sustentar este meu vício,
porque já não nos basta entrar nesse mundo,
queremos o nível seguinte, ir mais fundo,
estar nele de corpo e alma, por inteiro.
Tornei-me, sem tardar, um espírito interesseiro,
aproximava-me desta ou daquela pessoa
com um discurso feito meio assim à toa,
mas com tanto rendilhado que as convencia
de que aquilo era bom, e só se arrependia
quem, teimoso, não quisesse também experimentar.
Falaram-me do abismo, mas esse lugar
não tinha para mim qualquer existência,
era uma invenção, uma incongruência.

Mas um dia, quando dei por mim,
estava lá, no abismo. Como ali caí,
não sei ao certo. E onde tudo começara?
A resposta, por um instante, chegou-me clara:
Puta que pariu essa maldita primeira vez
em que votei para o parlamento português
e meti p’ra dentro essa droga
de acreditar em Portas, Coelho e Catroga!

El Rey Ninguém
(desde uma clínica de reabilitação 
para aldrabodependentes)

Nota: ilustração de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: Santos Clérigos, Beatas e Irmãs Incorruptíveis.")

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Sigam o coelho!...


Logo desde bem pequeno
Que me ensinaram, ó coelho,
Que no capítulo sexual
Cometias proeza sem igual,
Que era fornicares a mil à hora!
E o que eu descubro agora?
É que como dás a f*da
Parece que se tornou moda,
Tanto que eu já estou farto
De ser deixado de quatro
Por um animal tão f*dilhão,
Que a qualquer um tira o tesão!
Mas quem será o herói do pentelho
Que anda seguindo teus passos, coelho?...


El Rey Ninguém
(a tirar uma pós-graduação em 
"Comportamento sexual do coelho lusitano")

Nota: ilustração de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: De formações craneanas, Vanitas varias.")

sábado, 29 de setembro de 2012

Let's Switch Places!...

Para a Ana Cristina Martinho

Um dia destes vai ser assim: só por pirraça
vamos amputar o prefixo à desgraça,
vamos fazer o contrário do que tem sido,
ser o reflexo de lado de lá do vidro.
Por isso, vou apresentar-te uma proposta
tão bem elaborada, que não se possa,
em perfeito juízo, recusar. O primeiro outorgante,
pois claro, serás tu, cancro multiplicante,
e o segundo, naturalmente, serei eu, esta carne
onde, abusadamente, te instalaste sem avisar-me.
Não te quero enganar, bem pelo contrário -
para veres, quero até registar em notário
esta nossa, como dizê-lo?, alteração contratual,
tudo conforme preceituado em lei laboral,
tudo feito com transparência, preto no branco.
Ahn? Que me diz a isto, Sr. Cancro?
Não estou a fim, entre nós, de mais acintes,
por isso, a minha proposta é bem simples
e, para começar, procederemos, então, assim:
sairás, calmamente, para fora de mim
e trocaremos de lugar, só isso, apenas isso,
uma coisa temporária, sem qualquer compromisso,
só para sabermos, quase por desporto,
como será cada um de nós ser o outro.
Só não podes, é claro, esperar que eu aja
como tu comigo, mas vais ver que encaixa
na mesma, com o teu, este meu feitio,
porque é certo que ainda tenho algum brio
que o meu ser se entranhe e permaneça
num outro ser que me acolha e receba.
Como vês, até temos bastante mais em comum
do que supúnhamos, e eu, perfeitamente, assumo:
gosto também de me multiplicar, fremente,
em especial num coração onde tenha posto semente.
É isso que farei contigo: semear um grão de amor
nesse inóspito chão, nesse horto de torpor
que deve ser o teu coração, se é que o terás.
Mas isso, para o efeito, na verdade tanto faz;
sei da força desta semente, sei quanto é vasta,
deita raiz na própria rocha, vivifica, jamais castra.
E digo-te já, caro amigo, o que faremos depois:
ensinar-te-ei a aconchegar, de mansinho, os lençóis
na cama de quem seja, frágil, o fruto
de um outro amor, o amor conjunto,
que é outra coisa que devias experimentar,
pois à vez de andares, por aí, obcecado, a multiplicar,
devias parar, seguir o meu conselho, e reflectir
como é bem preferível andar neste mundo a dividir…
Mas vai com calma, não te precipites, é pior,
amar aos pedacinhos, mas amar, é bem melhor.
Ama assim, como te ensino, que ao fim e ao cabo
nem te darás conta, um dia, de teres mudado.
E se, porventura, te perguntarem o que aconteceu,
responde, simplesmente, que o teu cancro, agora, sou eu…


El Rey Ninguém


Nota: foto da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Fotografia: Natureza-Morta, Classic.").





quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Luís, não Vaz, Volta!...



Torna-se um facto engraçado
que o tipo que nos desgraça
tenha, numa destas ocasiões que passa,
vindo citar um Desgraçado!

Quais terão sido as razões
para invocar trecho do Canto V?
Uma lata descomunal? Vinho tinto?
O que é certo é que Camões

estará dando voltas em seu túmulo,
pois se já se apercebera em seu tempo
pouco valer trabalho, merecimento,
acharia, agora, ter-se chegado ao cúmulo

de se ter governante tão belígero
que quererá, e isto é pela certa,
que o Povo, tal como sucedeu ao Poeta,
se ache e morra em estado mísero!...
 
 El Rey Ninguém 

 



 Bónus: compare as duas imagens acima, e indique qual dos dois indivíduos já fez alguma coisa de jeito pelo nosso país!

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Menos-valias



Tive, por um instante, uma como revelação:
Vender-me – nem mais! -, mas a bom preço!
Por exemplo: se vender aquilo que eu pareço
É seguro que, mesmo tendo em conta a inflação,
Arrecadarei, p’ra meu gáudio, bela maquia.
Afinal, trata-se, em todo o caso, de ser vivo,
Embora, aviso já!, eu não passe o recibo
Correspondente à transacção, mas nem franquia!,
Porquanto se fora de mim tenho vivido
E este vulgar existir sempre foi espécie de cela,
Que seja adepto da dita economia paralela
Não deixará o incauto cidadão compungido
Por me furtar a obrigações de natureza fiscal.
O que fui deixou por ser ainda muito de sobra,
Mas um homem vender-se é como à banha da cobra:
Ter jeito pro negócio – e muita lábia! – é quanto vale,
E o resto são coisas de bem somenos importância.
Vendo-me, pois sim!, quer avulso ou a retalho,
E se for por inteiro, então ainda menos me ralo,
Com direito, p’ra remate de stock, a traumas de criança
E às mulheres que eu, enfim, desamei de tanto amar!...
‘O que é demais é doença’ -  sempre meu pai mo disse,
Mas eu raras vezes, oh tão poucas!, subi à superfície
Para encher os pulmões desse tão precioso ar
Da razão. Parece que vivi sempre em apneia,
Mergulhado em mim mesmo, num qualquer abismo
Em que, ainda hoje, volta e meia, cismo –
Mas isto não é bom que se saiba ou se leia,
Pode dar-me cabo da potencial clientela.
Há, em suma, que vender-se o que não se é,
Mostrar-se católico, mesmo sem pinga de fé,
Ou, achando-a enfadonha, gritar que ‘a vida é bela’
E que vale bem a pena desfrutar, ser vivida,
O que, no meu caso, é exactamente assim,
Pudesse haver outro que a vivera por mim!
Mas pronto, chega! Chega de considerações existenciais,
Chega de estar aqui, feito penitente, a cuspir pró ar.
Negociemos: isto é preço de feira, é pegar ou largar,
Senhoras e senhores, cheguem-se à frente, quem dá mais…?

El Rey Ninguém


Nota: foto da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Fotografia: Retrato. Fidalgos, Galgos e Pardais...").