sexta-feira, 7 de junho de 2013

Cais da Despartida

Parece que em tudo o que se faz se desdiz
O que anos a fio escreveu o Luís:
Gente que partiu em busca do desconhecido,
E, a mim, mandam-me aceitar o estabelecido,
A mim, que só quero saber qual o preço
Deste ‘ser português’, mas sê-lo do avesso,
A mim, logo eu, que procuro um mar dentro de mim,
Mas que olho ao redor e me flagro assim,
Sentado, à extremidade de um promontório…
A carne petrifica-se-me, e o olhar marmóreo
Quer fitar além de tudo quanto lhe mostram.
 
 
Quer barcos que partem, outros que acostam,
Não quer divisas, insígnias, estandartes de impérios,
Se os houver, quer erguê-los, mas etéreos,
Um sonho sem chão, sequer pedra ou cimento,
Erigido ao alto, mas construído p’ra dentro…
Exigem-me, porém, plácido, lasso e langue,
Que corra em mim tal eflúvio que não o sangue
Que herdei, ainda imberbe, de meus egrégios avós.
Que invisíveis mãos me amordaçam a voz,
Me recobrem os olhos de um cáustico sal,
Me esmagam a alma a querer ser Portugal?!...
Deixem, por um instante, que seja nau, e que navegue,
Que às vezes, só partindo, já é certo que se chegue… 

El Rey Ninguém
 
 
Nota: foto de Delfim Dias.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Prato principal

Quadras à guisa de Bocage, a uma jovem manceba que abriu a boca e se olvidou da quão traiçoeira é a língua portuguesa. É que ele há tantas maneiras de comer

Tanta desgraça no mundo, tanta miséria sem nome,
E eis que há quem nele sofra estranha fome:
Diz não gostar de comer ninguém na vida,
Não apreciando, ao mesmo tempo, ser comida
 
Coisa assim, e dita de forma tão crua,
Faz-nos pensar: como tal fome se apazigua,
Se é que jamais poderá ser saciada,
Que nem com comer, ou comerem-na, se aplaca?... 

Há por aí quem queira comer em espiral,
E uma tal voracidade semelha a de um canibal,
Tanto que tudo o que mexa e possa dar prazer
Logo lhe dá terríveis ganas de comer. 
 
 
Noutro lado, há quem dê o corpo ao manifesto
E não ache que seja costume indigesto
Deixar-se comer por onde se queira e deseje,
Comendo-a bem comida, até que nada sobeje. 

Agora, quem uma e outra coisa assim rejeita,
Pensar-se-á a que gosto singular estará afeita…
Quero julgar que a acometerá também a fome,
Mas, para matá-la, enfim, a si mesma se come,
 
E assim, no prato que é todo seu corpo de mulher,
Seus dedos se revelam um instrumental talher,
E assim ela se prova, se saboreia, se degusta,
E a quem, esfaimado, a quer comer, ela, enfim, frustra…
 
El Rey Ninguém
 
Nota: imagem de AJ Caseirão, in "Desenhos: Santos Clérigos, Beatas e Irmãs Incorruptíveis."