sábado, 27 de outubro de 2012

Chutar cavalo


A primeira vez não custou nada:
entre amigos, numa noite bem passada,
alguém me convenceu a experimentar.
Hesitei, mas acabei por concordar.

‘Só uma vez não fará mal,
não dará cabo do metabolismo vital…’

Pensei, na inocência dos meus dezoito.
Mas aquela vez foi apenas o introito
de uma série de vezes, em torrente,
julgando que, assim, me faria gente,
seria parte do grupo – mas que ilusão!
Tanto que à segunda ou terceira ocasião,
embora já me tivesse custado menos,
e todos garantissem: ‘Nós também já fizemos…’
Comecei logo a sentir mãos invisíveis,
que eram como forças incríveis
que faziam de mim qual marioneta…
Mas de que era aquela a via certa
logo alguém tratou de me convencer,
e que seria fraqueza, cobardia, não o fazer.

O que meus pais juntaram, com tanto sacrifício,
viria depois a sustentar este meu vício,
porque já não nos basta entrar nesse mundo,
queremos o nível seguinte, ir mais fundo,
estar nele de corpo e alma, por inteiro.
Tornei-me, sem tardar, um espírito interesseiro,
aproximava-me desta ou daquela pessoa
com um discurso feito meio assim à toa,
mas com tanto rendilhado que as convencia
de que aquilo era bom, e só se arrependia
quem, teimoso, não quisesse também experimentar.
Falaram-me do abismo, mas esse lugar
não tinha para mim qualquer existência,
era uma invenção, uma incongruência.

Mas um dia, quando dei por mim,
estava lá, no abismo. Como ali caí,
não sei ao certo. E onde tudo começara?
A resposta, por um instante, chegou-me clara:
Puta que pariu essa maldita primeira vez
em que votei para o parlamento português
e meti p’ra dentro essa droga
de acreditar em Portas, Coelho e Catroga!

El Rey Ninguém
(desde uma clínica de reabilitação 
para aldrabodependentes)

Nota: ilustração de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: Santos Clérigos, Beatas e Irmãs Incorruptíveis.")

1 comentário:

  1. Caro El-Rey,
    excelente texto, bem construído. Há realmente drogas difíceis, mortais, que matam num segundo de decisão ou indecisão, depende da interpretação. Vai um cidadão a uma casota, num segundo faz uma cruz, no segundo seguinte deposita-a na urna e, fica agarrado , mal agarrado a uma droga letal de "pulhas encartados".Neste texto, só mudava o título,
    : "Chutar Cavaco !", porque quem alimenta e sustem esta droga é um tal cavacóide que, defende com unhas e dentes esta droga de governantes, embora não pareça, esta é a sua droga. Quando corrermos com o passos e cerrarmos portas, temos de queimar cavacos, e quanto antes, vem aí o inverno e, uma boa fogueira dá muito jeito.
    Abraço,
    Luís Sérgio

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