sábado, 14 de dezembro de 2013

PACCto com o Diabo

Estava longe ainda de raiar o dia
E eu, enquanto em meu catre dormia,
Fui literalmente abalroado por um sonho tão terrível,
Tão trágico, tão abismal, que o não tereis por crível:
Vagueava, como pelos nove círculos de Dante,
E por ali andava, completamente desaustinado e errante,
Matutando nessa inominável cousa da Prova de Avaliação…
Suores frios, tremores, taquicardia no coração,
Todo eu era a modos que um frangalho humano
No meio de todos aqueles vapores de gás metano,
Naquele braseiro infernal, em todo aquele lume,
Arrastando, atrás de mim, um grosso volume
De papéis, decretos, diplomas, e toda a sorte de relambório,
Que já mal passara na alfândega do Purgatório,
E que suscitava, das almas danadas, uma curiosidade tal,
Que eu me tornara o foco de toda a atenção infernal.
Procurando passar despercebido naquele paraíso dos horrores,
Recolhi-me, discretamente, à Fornalha dos Escritores,
Onde julguei poder ocultar-me, de forma discreta,
Fazendo-me passar, sei lá, por prosador, ensaísta, ou poeta,
Embuste para o qual, decerto, muito contribuiria
Aquela pilha de papéis, razão de tanta azia
E intestinais desarranjos, que comigo eu trazia
Desde aquele ignoto, maldito, malfadado dia
Em que, por azar, um legislador, também ele desarranjado,
Tirou da cartola um coelho, por sinal, já esfolado,
De fracas carnes, impróprio para consumo, como é óbvio,
Querendo fazer-me ainda mais do que já era pacóvio,
Ou tratando-me, então, como um simples burro de carga,
Como não fosse já por si onerosa e bastante amarga
A burrocratizada vida que a gente por aqui já leva,
Sem que nenhum legislador iluminado deste facto se aperceba…
Mas pronto!, uma vez que já estava no Inferno e estava,
Decidi aproveitar, ora essa, a oportunidade que me era dada.
Sendo assim, e apresentando-me o menos possível contrito,
Tive por bem submeter à apreciação o meu danado manuscrito,
No que fui mui pronta e cordatamente atendido,
Pois havia tempo que texto algum por ali fora lido.
Saramago, que da ardente geena me parecia fazer passatempo,
Passou, com recortada minúcia, os olhos pelo documento,
Vociferando, logo em seguida: ‘Foda-se, mas que bujarda!
Está visto: ao pé disto, meu Evangelho do Cristo não é nada!’
E saiu, barafustando que ‘Aqui é que eu não fico!’,
Dirigindo-se, deduzi, a entrevistar-se c’o Mafarrico,
O qual, vim mais tarde a saber, perante o contraditório,
Recambiou Saramago uns tempos para o Purgatório.
Já Sartre, detendo-se um pouco mais sobre o texto,
Não foi, a retirar uma conclusão, assim tão lesto,
Mas logo cuspiu que era merecedor de selo inquisitorial
Todo aquele emaranhado de natureza processual
E que, por isso, os seus escritos mais contundentes e ousados
Não mereciam ter sido tão ímpia e injustamente excomungados,
Pelo que, saindo com um facho de lume a arder-lhe no cu,
Protestou que iria, igualmente, satisfazer-se com Belzebu.
E o que é certo é que Sartre não voltou ali jamais…
Suponho que lhe tenha dado a volta com as teorias existenciais,
Ou então, por despeito, foi mudado para uma outra fornalha,
O que, no Inferno, como se sabe, não é cousa que muito valha.
Enfim, dei por mim a sós com Kafka, um tipo sóbrio,
E que mirou o texto, buscando, sei lá, um qualquer opróbrio,
Algo que pusesse em desacato aquela alma timorata,
O que não tardou a suceder: ‘Isto é kafkiano que se farta!’
Exclamou, protestando, enquanto recolhia as suas posses.
‘O meu Processo, ao pé disto, é um cardápio de doces!...’ -
Ainda o ouvi dizer. Deu imediatamente às de vila-diogo,
Arrepiando caminho por entre as labaredas de fogo.
Fiquei eu e só eu, c’o manuscrito aberto na mão…
Mas seria tão execrável essa Prova de Avaliação?!...
Lá concluí, para comigo poder ficar em paz,
Que o melhor seria consultar-me c’o próprio Satanás.
Pediu-me desculpa pelos cinco minutos de espera,
E perguntou-me, afinal, ao que é que ali viera.
Mostrei-lhe o documento, que com gran cuidado ele leu,
Com o tempo permitido naquele sítio contrário ao Céu.
‘Com mil baforadas de enxofre! Mas que vem a ser isto?
Quem forjou tal iniquidade? Com certeza não foi Cristo,
Porque coisas destas não se fazem lá no Céu…
Quem quer que o tenha feito, é bem pior que eu!...’
E depois ouvi tal desfiar de insulto e de impropério,
Que só ousei dizer que fora obra de um tal Ministério,
Em todo o caso, oficialmente, não dedicado à iniquidade.
‘Não importa! Ainda nos põe a todos fora de actividade!...’
E, posto isto, Satã, que até ali se mantivera assaz selecto,
Brindou-me c'um retumbante e improvável ‘Vade retro!’
Ao que de imediato aquiesci, dando à sola daquele lugar,
E tanto em meu sonho corri, que cansei e acabei por acordar.
Ao outro dia, já recomposto, lá fui para o sítio onde se trabalha,
Ainda bem viva, dentro de mim, a memória de tal fornalha.
Mas tudo tinha passado, fora um sonho, tão-somente e apenas,
Agora era tempo de me ralar com outros problemas…
Ooooh!, mas a felicidade não foi senão sol de pouca dura,
Já que, na verdade, me vi submerso na mais atroz amargura,
Porque, julgando que me livrara de tão vil experiência,
E que o fogo do Inferno fora loucura, sei lá, demência,
Dei por mim prisioneiro, oh meu Deus!, de cousa ainda bem pior,
Tal que até duvido que algum dia passe ou melhore:
Tendo estado no Inferno, esse lugar bruto e fero,
Razão maior encontrei agora para este meu desespero,
Pois, sonhando assim, acordar sempre fora o meu maior anelo,
Mas agora, se despertei, antes dormisse, pois é tal o pesadelo
Que, Avaliação por Inferno, a bem dizer, antes aqui estivesse
(A sonhar, acordado, em transe, conforme me apetecesse…),
E se a alma tem mesmo que se danar, nesta vida tão fugaz,
Então prefiro ficar sob a alçada…mas a alçada de Satanás!...


 El Rey Ninguém

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