quarta-feira, 5 de junho de 2013

Prato principal

Quadras à guisa de Bocage, a uma jovem manceba que abriu a boca e se olvidou da quão traiçoeira é a língua portuguesa. É que ele há tantas maneiras de comer

Tanta desgraça no mundo, tanta miséria sem nome,
E eis que há quem nele sofra estranha fome:
Diz não gostar de comer ninguém na vida,
Não apreciando, ao mesmo tempo, ser comida
 
Coisa assim, e dita de forma tão crua,
Faz-nos pensar: como tal fome se apazigua,
Se é que jamais poderá ser saciada,
Que nem com comer, ou comerem-na, se aplaca?... 

Há por aí quem queira comer em espiral,
E uma tal voracidade semelha a de um canibal,
Tanto que tudo o que mexa e possa dar prazer
Logo lhe dá terríveis ganas de comer. 
 
 
Noutro lado, há quem dê o corpo ao manifesto
E não ache que seja costume indigesto
Deixar-se comer por onde se queira e deseje,
Comendo-a bem comida, até que nada sobeje. 

Agora, quem uma e outra coisa assim rejeita,
Pensar-se-á a que gosto singular estará afeita…
Quero julgar que a acometerá também a fome,
Mas, para matá-la, enfim, a si mesma se come,
 
E assim, no prato que é todo seu corpo de mulher,
Seus dedos se revelam um instrumental talher,
E assim ela se prova, se saboreia, se degusta,
E a quem, esfaimado, a quer comer, ela, enfim, frustra…
 
El Rey Ninguém
 
Nota: imagem de AJ Caseirão, in "Desenhos: Santos Clérigos, Beatas e Irmãs Incorruptíveis."

 

 

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