quinta-feira, 26 de julho de 2012

Infamigerado


Não sou aquilo que vos pareço
E tudo quanto vos peço
É permissão para uma infâmia.
A minha face engana,
Desculpem que vos frustre,
Mas a minha decência é um embuste,
Palavra que vos tenha dito
Seria por estar aflito
Com falta de dinheiro no bolso,
Estar co’ a corda ao pescoço,
Ou qualquer coisa assim.
Não vos condescendais de mim,
Que nada vos peço doutro mundo,
Só isso mesmo: um insulto,
Poder escarrar na sopa,
Receber uma esmola e dizer que é pouca,
Não respeitar contratos,
Ser responsável pelos actos
Que cometa, tudo bem,
Mas noutra vida mais além,
Porque nesta em que me apanho
Todo o meu empenho
Está em trazer à superfície
A maior filha-da-putice
De que possa haver memória.
Eu quero, na minha história,
Uma página escrita a negro,
Um foco de desassossego,
Um vómito sobre o passeio
E andar com falta de asseio
Por entre as pessoas ditas civilizadas.
Eu já não quero saber: abram alas,
Que eu, a quem aprouver,
De bom grado lhe cubro a mulher,
E à filha, p’ra ser prático,
Inclui-la-ei no rito iniciático!
Isso de ser pessoa com modos,
Ser santo por vocês todos,
Para mim já não chega,
A minha própria alma renega
Qualquer moralidade, rechaça a ética,
Que importa que morra anoréctica
À míngua de alimento espiritual?!
Preocupa-me, apenas, o pessoal,
E, pessoalmente, não me preocupo
Com nada, senão c’ o estupro
De códigos de conduta.
Vós, que tendes vista curta,
Dai-me lá uma abébia,
Que eu trago em mim uma caterva
De maldades em embrião
À espera, assim, de uma ocasião.
Eu já passei pela Santa Sé
A requerer o auto-de-fé,
E se acharem vazio o meu espaço,
É simples: estou no Terreiro do Paço,
Entre tanto outro,
A ser purificado pelo fogo.
Envergonhei-me de ser só esperma,
Cansei-me de ser poema,
Quis ser o grito gutural,
Primitivo, de um Neanderthal,
Eco de alma ainda insana,
Tudo só pela infâmia
A que, julgo, tenho direito.
Estraçalho, rasgo o peito
Em súplica, mas vós,
Paladinos da tolerância, vós
Nem isso me concedeis…
Não!, parem!, não inventem mais leis,
Só essa (o resto que se dane):
A de, por um instante, ser infame,
Ser o que se espera, mas do avesso –
É tudo o que vos peço!...

El Rey Ninguém  
(descarnando-se para reencarnar...)

Nota: ilustrações da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: Da ressurreição de Lázaro")

3 comentários:

  1. Ilustre , El Rey !
    Este belo e bem humorado poema, lembrou-me alguns famigerados, que escarram para o homem comum, porque eles bestas disfomes, acham-se acima dos mortais. Tais alimárias, arrogam-se de relvas e a passos de cavaco vão lixando ao resto da manada que, excomungada da mesa farta já nem força tem para os seus ais.
    Não havendo ais, tuso o resto é disforme,por isso, que se lixem, bem lixados, os que nos lixam
    demais.
    Abraço,
    Luís Sérgio

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  2. Carlitos, o nosso El Rey preferido!

    Cá te lemos nestes dias de brasido, por terras mouriscas abaixo do Tejo, onde não se pensa em ética, nem em condutas malquistas, mas tão só numa bela sesta e talvez numa pinguita! Mas apesar desta adormentação, dou pelas notícias que vão caindo embrulhadas na mentira. Promessas, só promessas. Nada de concreto. Só uma incoerência que diz e contradiz. Por isso, consigo vislumbrar bem a tua metamorfose. Antes picar que ser picado e, a poder de nos picaram, vamo-nos armando de picos que nos cobrem de uma nova infâmia: a de sermos o avesso de tudo o que o poder, por decreto, determina. Anti-profissional, anti-pessoa, já que o inverso não é valorizado! Estou com o Luís Sérgio. Que se piquem nos seus próprios cardos que é como quem diz, que um dia paguem pelas enormidades causadas pelas suas decisões e as sinta na própria pele.

    Beijinhos e votos de boas férias!

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