terça-feira, 17 de maio de 2011

O povo é quem mais ordenha...

A minha natureza peregrina, que tantas vezes me arranca à segurança do meu castelo e me lança a enfrentar o pó da estrada, conduziu-me a uma aldeia recôndita onde, segundo vim a saber, havia uma cega devoção a S. Bento.


Cioso de aprender mais sobre tal culto, dirigi-me, imediatamente, ao oráculo da aldeia, que era um velho de barbas brancas, residente no Restelo. Interpelei-o nestes termos:

Nobre e respeitado ancião,
Como espanta o pensamento
Haver nesta aldeia a S. Bento
Tão tamanha devoção…

Ao que ele me retorquiu do modo que se segue,
a fim de explicar o que ali sucedia:

O povo é quem mais ordenha,
S. Bento quem mais mama,
O povo cava, caça, e anda à lenha,
S. Bento… fica a dormir na cama!

O povo é quem mais se esforça,
S. Bento quem mais tem fé,
O povo já não tem sequer carroça,
S. Bento… dificilmente anda a pé!

O povo é quem mais labuta,
S. Bento quem mais reza também,
O povo tem a memória assaz curta,
S. Bento lembra-se… do que convém!

O povo é quem mais paga o dízimo,
S. Bento quem mais recebe,
O povo aufere o salário mínimo,
S. Bento o máximo, e nunca deve!

O povo é quem mais cria galinhas,
S. Bento quem manda no galinheiro,
O povo cobiça sempre as das vizinhas,
S. Bento… não abre mão do poleiro!

O povo é quem mais do campo trata,
S. Bento quem mais o abençoa,
O povo trabalha que se farta,
S. Bento dá sermões de vida boa!...

E tal devoção, viandante, podes até crê-la estranha,
Ou apor-lhe ainda pior fama,
Mas nem por isso te perturbes,
Pois o Cordeiro de Deus tem tais úberes,
Que se ao povo cabe a ordenha,
A S. Bento, naturalmente, cabe a mama!

E eu, por mim, respondi-lhe, tão-somente, assim:

Oh ancião de barbas encanecidas,
Não dês mais tuas rimas por perdidas,
Pois após ouvir tudo isso,
Creio que nem Satã faria melhor serviço,
E assim, antes que o mal se me pegue,
A S. Bento vos deixo de todo entregue.
Tão cega fé levá-los-á ao Céu?...
Não tarda ainda lhe levantam um Palácio, digo eu…


El Rey Ninguém
(peregrino em chão blasfemo, está visto…)

1 comentário:

  1. Céus, gostei muito!
    Essa maneira irónica de retratar os males da nossa sociedade a sério que me fascinam.
    Ainda bem que ainda podemos dizer o que queremos e da maneira que queremos porque isto qualquer dia vira outra vez ditadura com as promessas que fazem e não cumprem, só vamos de mal a pior!

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