Enquanto o país não segue os trilhos da retoma,
Um homem tira as vestes de rei, veste as de plebeu,
Apanha a primeira boleia com destino a Roma,
E vai distrair-se c’os jogos do Coliseu…
Quiçá aí a velha receita de sangue, suor e lágrimas
Dê a este velho cronista, assim espero, o pretexto
P’ra lavrar, a bom mote, umas quantas páginas,
Enquanto, lá em baixo, cabeças rolam pró cesto
E outras acabam no estômago das bestas selvagens
Que contribuem, outrossim, p’ra tão bestial espectáculo,
Que traz, dos cantos do Império, a estas paragens
Toda uma turba p’ra quem não constitui obstáculo,
Por maior que seja, toda a distância ou lonjura
Que entre capital e províncias se instale ou medeie,
Certo que tão sádico consolo que a alma aqui procura
Serve, afinal, como calmante às vibrantes tensões da grei.
E o caso é que, desta vez, a coisa, efectivamente, promete,
Com um embate que oporá, na arena, dois titãs,
Os quais revolverão, com seus golpes, o chão inerte,
Aplicando estratégias por certo deletérias e malsãs
A quem ousasse sequer, entre tal gente, interpor-se
Não tendo a vida caucionada por uma qualquer apólice –
Está visto: defrontar gente desta não é decerto pêra doce,
Além de que o gladiador, é sabido, se rege por um códice,
Que tem a vida alheia em pouca ou nenhuma estima,
E daí que, nas mãos destes beligerantes moços
O “limpar o sebo” se torne quase obra-prima,
Onde esborrachar narizes e, já agora, partir ossos
Fazem parte de um não muito apetitoso cardápio!
Quem me conta, com pormenor, tudo sobre este combate
É um simples plebeu, de seu nome Esculápio,
P’ra quem as lutas ascendem a uma quase forma de arte.
É pela sua boca que fico, ardentemente, a saber
Que os gladiadores que entre si vão pelejar
São Armarius Soaris, adversário mítico, bem de se temer,
E um ilustre mas feroz desconhecido: Victor Gastare.
E enquanto não pode ainda arrear umas bujardas,
Armarius Soaris, experiente campeão, e sobremaneira sabido,
Inaugura a luta no movediço campo das palavras,
Conseguindo, no mínimo, deixar Victor Gastare aborrecido!...
O argumento de Soaris é de mui fácil compreensão:
Diz o velho contendor, em tom irónico e paternaal,
Que Victor Gastare pode ter técnica de campeão,
Mas será, em todo o caso, um gladiador… ocasional!
Este argumento é interessante e, aliás, diz muito
Sobre a concepção de Soaris sobre o ser-se gladiador:
Basicamente, é irrelevante se se percebe ou não do assunto;
A única coisa que precisa é, de patoá, ter um ror!
Não sei muito bem porquê, tudo isto me faz lembrar
A minha Terra de Ninguém, onde a real competência,
Na Polis, é coisa que o homem público deverá evitar,
Constituindo, ao invés, paleio e oportunismo uma ciência
A seguir, com todo o escrúpulo, por tais gentes…
Entretanto, diz-me Esculápio que está na hora das apostas:
“Amigo, diz lá quem queres ver ficar sem dentes,
Qual é, em suma, o gladiador de quem mais gostas?...”
Torno-lhe: “Esculápio, na Polis, há dois tipos de indivíduos,
E isto, definitivamente, é bem mister que se perceba:
Profissionais do saber, que no assunto são entendidos,
E profissionais de boca, que do assunto… não sabem peva!
E a diferença fundamental é que os primeiros dos dois,
Por saberem, fazem, por regra, bem, e só ocasionalmente mal;
E quanto aos outros, meu bom amigo, como tu bem verás depois,
Os outros só têm feito merda, e o bem… só a título ocasional!
El Rey Ninguém
(ocasionalmente farto de políticos profissionais…)