Na minha rua – rua da Saudade -,
Também mora uma senhora,
A qual, apesar já da sua idade,
Mantém intactos, da sedutora
Que foi em tempos,
Quase todos os predicados,
Que foram, em verdade, tormentos
Para homens de todo arrebatados
Pela sua avassaladora beleza,
Mais que suficiente razão
Para que a tal princesa
Quiseram tomar a mão
Em sagrado matrimónio,
Acenando-lhe com largo dote,
Benesses de património
Em benefício da verdade,
E apesar de formosa, e bonita!,
Como foi até tão tarde,
De pouco valeram ou nada,
Pois que o seu coração
E a sua alma apaixonada
Caminhavam noutra direcção,
Pois quer esta,
Quer o outro primeiro,
Eram, e não de forma funesta,
Ela cativa, ele prisioneiro,
Dos encantos e defeitos
De quem por ela não tinha,
Por ter provado tantos leitos,
Mais que a paixão comezinha
De quem nada mais vê
Na figura da mulher
Do que um meio de prover
Era este moço o filho
Não de gente letrada e sábia,
Mas antes um ambulante sarilho
Dotado de muita lábia,
O qual, devido a mulheres
Já ter tido muitas,
Delas esperava não mais que os prazeres
E outras mais coisas gratuitas.
E como esta minha vizinha
Sonhava, ardentemente, co’ a ocasião
Em que não estaria mais sozinha,
Mas em estado de união
Com esse referido crápula
(o qual, mal disto deu conta,
A quanto podia deitou manápula…),
Fez o papel da tonta
Que está disposta e acredita
Em tudo quanto lhe dizem,
E é bem capaz, mui contrita,
De se ir mantendo virgem
Para quem era, afinal, um valdevinos
Sem quaisquer escrúpulos, moral ou ética!...
Tal fulano, pilantra com pinta de burguês,
Vá-se lá agora descobrir,
Era um político português
Que passava a vida a sorrir
No meio de grandes desgraças,
Urdindo, com subterfúgio,
Grandes logros, grandes farsas,
E procurando sempre refúgio
No que os outros – não ele! –
Tinham dito ou feito alhures,
De molde a safar a pele
E sair limpinho de negócios obscuros!
Mas nele acreditou uma nação inteira,
Uma mão cheia de gente estulta,
E é também por ele que morrerá solteira
A minha vizinha, ainda que sedutora… Dona Culpa!
El Rey Ninguém
(a pensar nas palavras de José Mário Branco:
“A culpa é de todos em geral,
mas não é de ninguém em particular!” Ora pois sim!…)
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