Para a Ana Cristina Martinho
Um dia destes vai
ser assim: só por pirraça
vamos amputar o
prefixo à desgraça,
vamos fazer o
contrário do que tem sido,
ser o reflexo de
lado de lá do vidro.
Por isso, vou
apresentar-te uma proposta
tão bem elaborada,
que não se possa,
em perfeito juízo,
recusar. O primeiro outorgante,
pois claro, serás
tu, cancro multiplicante,
e o segundo,
naturalmente, serei eu, esta carne
onde, abusadamente,
te instalaste sem avisar-me.
Não te quero
enganar, bem pelo contrário -
para veres, quero
até registar em notário
esta nossa, como
dizê-lo?, alteração contratual,
tudo conforme
preceituado em lei laboral,
tudo feito com
transparência, preto no branco.
Ahn? Que me diz a
isto, Sr. Cancro?
Não estou a fim,
entre nós, de mais acintes,
por isso, a minha
proposta é bem simples
e, para começar,
procederemos, então, assim:
sairás, calmamente,
para fora de mim
e trocaremos de
lugar, só isso, apenas isso,
uma coisa
temporária, sem qualquer compromisso,
só para sabermos,
quase por desporto,
como será cada um
de nós ser o outro.
Só não podes, é
claro, esperar que eu aja
como tu comigo, mas
vais ver que encaixa
na mesma, com o
teu, este meu feitio,
porque é certo que
ainda tenho algum brio
que o meu ser se
entranhe e permaneça
num outro ser que
me acolha e receba.
Como vês, até temos
bastante mais em comum
do que supúnhamos,
e eu, perfeitamente, assumo:
gosto também de me
multiplicar, fremente,
em especial num
coração onde tenha posto semente.
É isso que farei
contigo: semear um grão de amor
nesse inóspito
chão, nesse horto de torpor
que deve ser o teu
coração, se é que o terás.
Mas isso, para o
efeito, na verdade tanto faz;
sei da força desta
semente, sei quanto é vasta,
deita raiz na
própria rocha, vivifica, jamais castra.
E digo-te já, caro
amigo, o que faremos depois:
ensinar-te-ei a aconchegar,
de mansinho, os lençóis
na cama de quem
seja, frágil, o fruto
de um outro amor, o
amor conjunto,
que é outra coisa
que devias experimentar,
pois à vez de
andares, por aí, obcecado, a multiplicar,
devias parar,
seguir o meu conselho, e reflectir
como é bem
preferível andar neste mundo a dividir…
Mas vai com calma,
não te precipites, é pior,
amar aos
pedacinhos, mas amar, é bem melhor.
Ama assim, como te
ensino, que ao fim e ao cabo
nem te darás conta,
um dia, de teres mudado.
E se, porventura,
te perguntarem o que aconteceu,
responde,
simplesmente, que o teu cancro, agora, sou eu…
El Rey Ninguém
Nota: foto da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Fotografia: Natureza-Morta, Classic.").