Tanto e tão agudamente me punge
O que escreveste, Carl Jung:
“Tudo aquilo que não enfrentamos
Torna-se o nosso destino.” Convenhamos,
Carl, que essa me é difícil de engolir,
Mas cheguemos ao ponto de admitir
Que assim seja (e eu aceito-o),
Temo, porém, que o meu derradeiro leito
Não deva ser o ortodoxo.
Não sei, também, se um poço
Venha a ser o mais prático,
Posso contaminar o lençol freático,
E se podre já me assumo,
De água imprópria para consumo
Não quero eu que me imputem,
Apesar de toda a pátina, toda a ferrugem
Que me recobrem a pele,
Fora quanto segrego de fel…
Isto, porém, é coisa de pouca monta,
O podre cá dentro é que conta,
E esse, Carl, to garanto,
Gera mais câncer que amianto,
E se é que a alma, verdadeiramente, prescreve,
Pois bem, Carl, tumba não me serve,
Vala comum muito menos,
Nem o crematório, para os enfermos.
Aquilo que trago cá dentro,
E que raramente ou nunca enfrento,
Não cabe em tais medidas:
Fraquezas, covardias, tendências suicidas,
A palavra que se quebra,
Vísceras, vasos, nervos, merda –
Tudo isso, Carl, terás que admiti-lo,
Mas nem sequer um silo
Servirá, para tanto, de sepultura.
Não vou mais a tempo da cura,
Carl, já disso estou certo,
Não estranhes, assim, que meu féretro
Não seja o convencional,
Nem queira enterro formal...
Carl, enfrentar que não me enfrento
É quanto deixo em testamento.
Quanto a ti, inuma-me, onde e quando quiseres,
Conquanto em séptica fossa me enterres…
El Rey
Ninguém
(indo-se,
por indeterminado período…)
Nota: ilustração da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: A verdadeira beleza é interior.")
Nota: ilustração da autoria de A. Jorge Caseirão (in "Desenho: A verdadeira beleza é interior.")