quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O ano de 74

O ano de 74... 
ou o preâmbulo de uma dieta muito rigorosa! 

Corria o ano de 74
E eu, que andava farto
De comer sempre pão,
Pensei que já seria ocasião
De provar doutra fruta.
Mas onde a abundância é curta
E o próprio pão, que se saiba,
Vem cheio de bolor e saibro,
Não há muito por que escolher
Quando o negócio é comer.
Já trabalho, isso havia com fartura,
Cultivar a terra agreste e dura
Era um ritual dia sim, dia sim.
Pensei noutra coisa para mim,
Que não aguentaria muitos mais anos,
Nos ombros, o peso dos desenganos,
E as mãos, calejadas de trabalho,
E a alma, também metida em tal baralho,
Não suportariam por muito mais
O que já antes de mim os meus pais
Tinham suportado a vida inteira –
Como houvera vida daquela maneira,
Como houvera hipótese de ser feliz
Onde baixar a cerviz
Era tudo o que se aprendia,
Isso, e uns rudimentos de cálculo, de escrita
(P’ra quem tivesse tal sorte…)...
Quando muito, vinha a morte
E um homem, de braços nus,
Assinava c’o corpo em cruz,
Todos os dias da vida gastos
A ler, no céu, os astros,
E a escrever, no escavar da terra,
A história que cada um, afinal, encerra…
Mas depois desse ano de 74
Decidi pôr outra comida no prato;
Coisas comeria por primeira vez,
Como “décimo terceiro mês”,
E outro, que aparecia no prato
De ano a ano – o “décimo quarto” -,
E outros reais acepipes,
Como o sermos livres
E podermos dizê-lo, podermos gritá-lo,
Sem recebermos um estalo,
Um escarro na cara, ou coisa ‘inda mais vil,
E de só cem deveres, ter agora direitos mil!
Mais: não ter, em nós, a alma encurralada,
Trazer, entre os pares, a cara lavada,
Ser-se, enfim, o que naturalmente já se era,
E não passar, pela vida, uma outra inteira de espera!
No restaurante, agora, já tinha direito a talher,
Já era “senhor”, e não um outro qualquer,
E onde fora “tu”, já passava a “você”,
Comia de tudo, até gourmet,
Ah!, tornara-me um biltre,
Comia até sem apetite,
E, como ainda achasse pouco,
Desejava até o prato do outro,
Ah!, eu queria mesmo era comer o mundo todo!
“Olha que estás a ficar muito gordo…” –
Avisou-me a minha mãe, muito séria,
Mas já nem Santa Quitéria
Calmava aquela fome de cão!
Piorou, numa outra ocasião,
Quando ao atafulhado prato meu
Veio parar o conduto europeu
E a acompanhar, uma travessa de regalias
(E a pança a ficar-me com estrias…);
“Tens que comer menos, Carlos…”
Mas como resistir aos robalos?
Até que cheguei ao limite,
Já não controlava o apetite,
Estava obeso que não podia,
Mal me mexia, já não corria, já não fazia
Aquilo do truca-truca…
Resultado: embarquei numa dieta maluca,
Determinado a ficar um dia
Tão delgado quanto uma enguia!
Cortei nos doces e nas jantaradas,
Nas condições de vida melhoradas,
De tudo quanto era nefando
Fui, de bom grado, abdicando,
Até que, vendo-se ao espelho este moço,
Já era só pele e osso.
Mas, orgulhoso de ter emagrecido,
Sentia o dever cumprido,
E não tardei a descer à praça,
P’ra mostrar à gente que passa
O meu perfil renovado.
“Aaahhh… mas estás tão magro!...”
Pois pudera, minha gente,
E o que é nisso surpreendente?
Dizia uma: “Ai eu perdi 20 quilos…”
Outra: “Ai, peso tanto como dois grilos…”
Outra ainda: “Agora já caibo nestas calças!”
E uma outra ia pôr mamas falsas,
Porque, dizia, rejuvenescera
E estava firme que nem uma pêra!
E ainda uma outra – outrora maltrapilha -,
Que, agora, a confundiam c’a filha…
Mas todas estas argumentações
Não eram senão míseros tostões,
Quando, dando-lhe c’a força toda,
Lhes abri de tal guisa a boca:
“Pois eu, de oitenta e picos p’ra cá, amigos,
Fora o resto… já perdi dois subsídios!!!
E com esta calei tal gente,
E vim-me embora, magriiinho… e contente?

El Rey Ninguém
(de tanga, de cinto apertado… tudo!)


3 comentários:

  1. Bom texto. De facto existe maior magreza do que perder dois subsídios de uma vez, mais aumentos d IVA, EDP, transportes , etc, etc,

    Luís Sérgio

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  2. Com o devido respeito pelo povo judeu, isto trata-se do holocausto das nossas carteiras, da nossa existência, da nossa liberdade...

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  3. tambem podia nao me ter roubado dois valores o ano passado :) .l.

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