Não
é o Inferno, afinal, como se pensa,
Ando
enganado desde a nascença,
Que
se eu soubesse ao que vinha,
Não
tinha acreditado nessas histórias da carochinha,
De
que Inferno é fogo que não mais acaba,
Presidido
por um tipo dúbio, com pés de cabra,
O
olhar como brasas, todo ele lúgubre, lúbrico,
E
expirando, pelas narinas, baforadas de sulfúrico…
Quem
assim o pintou enganou-se, decerto, na pintura,
Inferno
não é geena que p’ra todo o sempre perdura,
Não
são fornalhas a arder, nem são almas em sofrimento,
Não
é o Ser a resvalar p’ra sempiterno esquecimento.
O
porquê: hoje, com uma lâmina, golpeei a minha carne,
E
o sangue que saiu, viscoso, desse derrame,
Era
quente, verdadeiramente quente, não cálido, sequer ameno,
Mas
quente, absolutamente quente, como dizem ser o Inferno;
Hoje,
também, quando te despi, toquei, beijei o ventre,
A
tua pele vibrava e era, como todo o resto, assim: quente;
A
própria Terra-Mãe, onde me prostro, em que me lavro,
É
ainda mais quente a cada palmo que nela escavo;
E
ao raiar do dia, a Estrela da Manhã, bela, aurifulgente,
Deposita-me
no rosto a sensação que é a de ser quente…
Por
conseguinte, em tudo onde há vida, há calor, há prazer,
Aí,
estou certo disso, o Inferno nunca foi, não pode ser.
Não
há-de, por isso, ser o Inferno inóspito, ardente, fétido,
E
terá, em vez e por força, que ser um sítio gélido,
Onde
o calor e a luz sejam coisa que não vinga,
E
não haja, além disso, coisa outra que o distinga
Senão
gelo, gelo que tudo cobre e abraça, num amplexo glacial,
E
neve, neve que se empilha num brancor sem igual -
E
essa algidez insensível, por tudo isto, pelo menos,
Seja
arquétipo do mais desumano dos infernos…
Porque
hoje eu não quero descer, quero subir a esse Inferno,
Que
eu sei que ele é no cume da montanha, quando Inverno,
E
eu quero ir lá, eu irei lá, sem companhia, todavia, assim, sozinho,
Que
mesmo pró Inferno há sempre placas no caminho…
El Rey Ninguém
(Saindo de hiberno
estado…)
Nota: fotografia da autoria de Delfim Dias.